Perfect Days
Tive a oportunidade (e a boa sorte) de conhecer muitos Hirayama-san. Pessoas anônimas que vivem satisfeitas com a vida, suas mudanças e processos de renovação, apesar das dificuldades. Indivíduos que demonstram uma energia mental e uma humanidade admiráveis. Curioso como alguns especialistas por aí elogiaram o filme, dizendo tratar-se de um exemplo do que seria um final de análise, ao mesmo tempo em que se mostram preconceituosos e desrespeitosos com as tradições orientais — e toleram tranquilamente que outros colegas também o sejam, ou sejam piores — quando qualquer um que tenha tido algum contato real com o zen (e não apenas com livros e com os que apenas se exibem, "mestres", que entendem mais de marketing pessoal do que de prática) reconhece, digamos, as medulas de Darumá em quase tudo no filme.
Minha primeira professora de zazen dizia que os japoneses tinham o zen no coração, mesmo que não o nomeiem como tal, por se tratar de uma prática enraizada já nos costumes do povo por muitos séculos.
Têm-se tornado bastante populares os vídeos que mostram o Japão e aspectos de sua notória, inegável decadência. Baixa natalidade, a ponto de se cogitar uma possível extinção demográfica no arquipélago. Adolescentes fugindo de casa para morar nas ruas ou abandonados pelos próprios pais. Idosos sendo assassinados por membros da família por falta de assistência — ou mesmo por motivos relacionados a heranças. Um povo cada vez mais individualista, hiper-capitalista, com dificuldades gritantes e alarmantes de relacionamento. O que contrasta absurdamente com os japoneses de outras épocas. Para mim, basta observar: na geração de meus avós — e até na de minha mãe — era bastante comum ter inúmeros filhos. Tive dezenas de tias e tios-avôs. Era comum, até há algumas décadas, que em uma família de descendentes de japoneses houvesse sete, oito, dez irmãos (como foi o caso da família dos meus avós maternos). Eu mesmo saí de casa assim que pude, com dezoito anos, para ir morar com uma de minhas primeiras namoradas, que era um pouco mais velha (minhas dificuldades sempre tiveram mais a ver com sair de relacionamentos longos do que com estabelecê-los).
Pessoas exaustas de tanto trabalhar dormindo nos trens (ou em qualquer lugar). Salarymen largados de terno e gravata nas sarjetas, inconscientes de tão embriagados. Todo tipo de prostituição imaginável e de fácil acesso. Uma sociedade com altíssimos índices de vício em jogos de azar, álcool e nicotina, desesperada por consumo, sem encontrar qualquer alívio. Tanta coisa que chega a ser difícil elencar. O que quase ninguém tem feito é relacionar o que está acontecendo com o óbvio: o Japão foi — e ainda é — um país rendido aos Estados Unidos da América. Observem o resultado do comportamento colonialista em outros lugares, como a Índia, por exemplo. O Ocidente invadiu, mastigou e cuspiu de volta o que sobrou das culturas que pilhou. É assim desde a Roma Antiga, como bem sabem os historiadores. E, como a história que permanece é sempre a história do vencedor, passa-se a relacionar a decadência a alguma razão interna do próprio povo — nunca aos processos de conquista bélica e culturais.
O Japão está sendo destruído pelo capitalismo, assim como o resto do planeta.
Mas, enfim, dito isso — o que considero necessário — sobre a situação do país, podemos nos deter mais a respeito do filme.
Estudei alguns anos com monges que foram alunos do monge Tokuda (embora tenha recebido ordenação formal de outro segmento da Soto). Ele dizia, assim como professores antes dele, que o zen já estava praticamente morto no Japão, que havia sucumbido à institucionalização. Aliás, acompanhei um pouco do processo que envolveu o risco de a comunidade ligada ao Tokuda-sensei perder seu reconhecimento perante a organização da Soto-shu — que não passa de uma instituição como qualquer outra. Ele simplesmente não dava a mínima para a burocracia. Sua preocupação era transmitir o zazen.
Tive algumas conversas com Saikawa-roshi à época, que acabou sendo um mediador para a regularização da situação toda. Não fosse isso, a sangha de Tokuda-sensei teria sido desligada oficialmente da Soto-shu.
Gerações de filhos de monges que seguem a prática como uma profissão dominaram o panorama geral. Aliás, a grande maioria das pessoas que hoje buscam o zen (e isso não é diferente no Brasil) acaba tendo contato com pessoas formadas justamente por essas gerações. Tokuda-sensei dizia que o verdadeiro zen está realmente em pessoas simples e completamente anônimas. Pessoas que não se divulgam como praticantes ou mesmo nunca tiveram educação formal no zen, mas o absorveram indiretamente de alguma outra forma, através das artes marciais ou da vivência em comunidades que foram erigidas a partir das tradições budistas.
O japonês é xintoísta e zen sem saber e sem nomear. Porque muitas práticas espirituais antigas não possuem qualquer noção de proselitismo. Ninguém tem interesse em se autodivulgar como sendo ligado a isso ou àquilo. Muito menos em convencer outras pessoas a seguirem o que fazem.
O filme mostra exatamente isso. Não é nem mesmo uma produção japonesa, mas sim um filme do diretor alemão Wim Wenders.
O personagem Hirayama-san não se importa com se atualizar. Não tem sequer televisão em sua humilde casa. Não demonstra o mínimo interesse pelo consumismo contemporâneo. Leva uma vida simples. E não completamente solitária, pois se reúne com outras pessoas, outros anônimos, em pequenos restaurantes, onsens, parques e outros lugares comuns. Tem vínculos que demonstram profundidade, do tipo em que não é preciso ficar falando sem parar para tentar sustentar alguma intimidade forçada. Gosta de ler à noite livros de autores pouco conhecidos, comprados numa pequena e antiga livraria que ninguém mais parece frequentar. Escuta músicas de outras décadas, ainda em fita cassete. Músicas que realmente o emocionam e comunicam algo verdadeiro. Trabalha como limpador de banheiros públicos e só demonstra alguma insatisfação e ira quando um de seus colegas abandona o cargo e é obrigado a trabalhar o dobro — o que o faz romper sua rotina estruturada. Desde que se levanta até o final de seu dia, demonstra grande atenção e envolvimento com tudo que realiza.
Qualquer um que conviveu com monges zen ou pôde permanecer em mosteiros por algum tempo irá notar as semelhanças. No zen simplesmente não se fala em satori ou iluminação. Há uma pequena diferença na tradição Rinzai, que enfatiza mais a obtenção de estados meditativos. Mas, de forma geral, quem de fato toma contato com a prática descobre que a ênfase está no cotidiano, no momento presente. Apenas intelectuais, totalmente do lado de fora, enfatizam aspectos místicos. O zen real é mundano, tão ordinário que desinteressa o grande público. Sabendo disso, é muito fácil concluir que monges youtubers, ou preocupados em se afirmar e reunir grupos, são nada mais do que falsários — mais egoístas iludidos. Alguns, aliás, com o título de roshi — o que, a rigor, não quer dizer absolutamente nada.
"Perfect Days" é um dos filmes mais zen-budistas que já pude ver. Sem em nenhum momento fazer qualquer alusão direta ao budismo. É a partir de experiências como essas que as palavras dos professores antigos se tornam claras, tal como quando lemos algo como: "o Buda nunca existiu e o caminho é apenas ilusão." Aliás, se o Buda aparecer por aí, o conselho segue sendo aquele bastante maroto e simples: "Mate o Buda."