terça-feira, 27 de fevereiro de 2024


 amãeteraço


"I have nothing to say,

 I am saying it, 

and that is poetry

as I need it"

(John Cage)



                                         Música:"Colisões"*  (marcos t.)

 

  H. Morioka foi a primeira pessoa que me ensinou formalmente o zazen. Não a via há muitos anos. A monja de cabeça raspada que aparece no vídeo curioso (abaixo deste texto) com a visita da, à época, princesa Mako ao Museu Histórico da Imigração japonesa, no PR. Ela também é praticante de Tai Chi, Chanoyu e Ikebana, professora aposentada (de educação física, se não me falha a memória) da Universidade Estadual de Londrina (onde fiz meu curso de Letras Modernas). A chamo carinhosamente de "mãe de Dharma". Lembro dela ainda com cabelos na altura dos ombros, sentada com naturalidade na posição do lótus inteiro (kekka fuza, 結跏趺坐), sempre afável e educada. 

  Antes, durante a adolescência, conhecia do zen apenas poemas de Bashô, Issa, Paulo Leminski. E aquilo que falavam alguns amigos mais velhos sobre o tema. Lembro de um especialmente que estava se formando em jornalismo. De temperamento greimasiano, leitor de Roland Barthes e dos estruturalistas franceses, falava com admiração sobre o zen. O que me fez desenvolver respeito e interesse. Até então, qualquer matéria ligada ao "budismo", era apenas mais religião. "Coisa de batchan". Algo pelo qual não nutria muito interesse (muito embora tenha memórias de curiosidade pelas imagens de arte antiga que se encontrava em enciclopédias empoeiradas, desde a primeira infância - algo do período gandhara, estátuas mantendo mudrás e ásanas, velhas representações indianas, iconografias). 

  Lembro, desde criança, de experiências cômicas ligadas a visitas aos "oterás", os templos budistas que no Brasil são quase que apenas frequentados por pessoas mais velhas, imigrantes e descendentes de imigrantes japoneses. Não é incomum que quase todos só falem japonês nas reuniões e que o responsável seja um missionário estrangeiro. Lembro de cenas como meus tios roncando e eu e meus primos nos segurando para não explodirmos em risadas, ao escutarmos o sacerdote entoando sutras de modo, para nossa percepção, algo exagerado.

  O zen me interessou por causa da literatura, por não eliminar a verificação dos fatos e a lógica (os sutras dizem: teste por si mesmo, não confie em nenhuma autoridade, teste um ensinamento como quem verifica o ouro no fogo), embora reconheça um limite para o papel da racionalidade como fator único, absoluto, para a apreensão da realidade.

  O que convencionamos chamar de "pensamento oriental", também a educação dentro das artes marciais japonesas tradicionais, atribui AO CORPO um papel fundamental. Corpo e mente são interdependentes.

  "Corpo-mente". 

  Não espanta que, hoje, alguns estudiosos reconheçam no budismo vindo da Índia influências não só para o campo da filosofia grega antiga, mas também para o método científico moderno, para as matemáticas e as ciências do comportamento e da mente contemporâneas. Assim segue, conforme vai sendo alterado o paradigma da Grécia como berço oficial da ideia de "filosofia",  do "verdadeiro pensamento racional e investigativo". Havia pensamento no oriente antigo, assim como em países africanos em tempos ainda mais remotos, em tribos indígenas ancestrais, altamente desenvolvido, apenas foi propositadamente deslegitimado, estrategicamente apagado pelos invasores. Enfim, algo dos debates atuais das ideias. 

  Não pratico o zen como religião. Embora possa ser compreendido também de tal maneira. Não acredito em reencarnação. Não acredito em renascimento (que é diferente de reencarnação). Nunca tive alguma percepção muito especial sobre os temas, poderia dizer. Também não deixo de dormir à noite tentando refutar conceitos tão antigos, anteriores à civilização e  pensamento ocidentais. O mesmo para conceitos complexos como "karma", que pode ser compreendido, de forma básica, como a boa e velha dupla "causa e efeito". 

  Quanto à prática, um cristão, caso queira, pode se tornar um melhor cristão. Um melhor mulçumano, da mesma maneira, etc, através do zen. Ou alguém pode se tornar um melhor ateu. Ou mesmo todos podem permanecer como preferirem, podem permanecer em suas tradições sem se preocupar com nada disso. Simplesmente porque não há proselitismo nessa arte antiga (ou: não deveria haver). Os melhores praticantes que pude conhecer sempre optam por serem discretos. Icônica a passagem de Shakyamuni - algo talvez um pouco engraçado que nos faz refletir - depois da experiência do satori, ponderando que as pessoas, de modo geral, não vão se interessar pelo seu ensino. O Buda histórico teria considerado adentrar o Nirvana em silêncio. O grande caminho para a paz mental não parece muito interessante ou fácil de ser atingido. Paraísos celestes, vida eterna e incapacidade de desenvolver desapego, por exemplo, surgem como opções melhores para a maioria das pessoas. Não mudou muito, quanto a esses aspectos, de dois mil e seiscentos anos para cá. Enfim, quanto aos professores, nunca conheci um que me pareceu realmente digno de nota que fosse famoso, youtuber, ganhasse muito dinheiro fazendo palestras, coisas do tipo. 

  Compreendo o zen, o budismo e as antigas técnicas de meditação do oriente como conjuntos de técnicas que formam uma milenar "ciência" da mente. E estudiosos modernos do campo das pesquisas neurológicas, da psicologia e da psiquiatria parecem concordar. Tanto que há modas, hoje, no ocidente, ligadas ao "mindfulness", por exemplo. Dentre outros fenômenos que, não raro, visam transformar em mercado tudo que ainda couber na prateleira do "exótico". 

  Frequentei por uns sete anos o zazenkai (encontro para prática de zazen), no Busshinji do Paraná. 

  Todas as semanas chegava, arrumava a sala de meditação (zendô), varria o chão, fazia o zazen, e no final tomávamos chá e conversávamos. 

  Quase nunca se discutia sobre teoria budista. "Quem fala, não sabe", segundo o Tao. Foco maior sempre na prática. O treino no zen é sem palavras. Deriva do convívio direto com seus professores. E cada um, dentro do possível, acaba por encontrar e permanecer com aqueles professores com quem sente mais afinidades. 

  Não existe uma centralização hierárquica definitiva, absoluta. Quero dizer, posso discordar completamente da metodologia (e da realização) de mestres de outras linhagens dentro da soto e ao mesmo tempo conviver com todos respeitosamente dentro da comunidade de praticantes. E, fato óbvio, só posso falar do zen que recebi, quer dizer: apenas posso falar e recomendar aqueles professores com quem convivi diretamente. Talvez setenta por cento de tudo que chamam de "zen", "budismo", "três veículos", hoje em dia, simplesmente não me interessa. Fora a grande fatia do que é enganação e pode ser pernicioso. Nunca cansaria de alertar possíveis interessados por meditação (e artes marciais tradicionais) que é difícil encontrar bons professores, ainda mais ultimamente, que quase todos se dizem "monges", "mestres". A melhor atitude é ser sempre bastante desconfiado e procurar pesquisar minuciosamente a linhagem de professores do professor que por ventura você possa vir a escolher (fato que rememoro: era particularmente tão desconfiado ao ponto de exalar mesmo tal insegurança. Numa bela ocasião, Saikawa Roshi, depois de quase um semana num retiro, fazendo vários dokusans, possivelmente sentindo o cheiro disso, simplesmente sentou quase um dia inteiro no zazendô - das 4 da manhã até quase nove da noite - sem se levantar do zafu (almofada). Um senhor (à época) na faixa dos sessenta anos. Handa-san, seu assistente, virou para mim e sussurrou, brincalhão: "ele está dormindo". Bom, depois de testemunhar algo assim, passou a ser inegável que alguma técnica séria estava envolvida nisso tudo. Algo não diferente de alunos de artes marciais que em alguma ocasião especial testemunham um golpe, um movimento impressionantemente refinado, ou um pintor, um calígrafo que traça algo com enorme naturalidade e beleza, algo que muito mais do que um longo discurso, demonstra, de forma direta, a seriedade da técnica.  

  No Busshinji do Paraná, à época em que Morioka-san ainda não havia recebido a ordenação monástica, recebi a investidura leiga (registro de transmissão da linhagem de professores) do abade J. Kurosawa (hoje residente em Shizuoka). 

  Paralelamente, por uns cinco anos, também frequentei outro zazenkai dirigido por E. Fujiwara. Menos formal, ligado aos alunos do monge Ryotan Tokuda Igarashi. Tokuda-sensei estudou com renomados professores do século vinte, como Sogen Asahina e Kodo Sawaki. Ele teve/tem uma importância fundamental, indiscutível e inapagável, para a transmissão do zen no Brasil, embora, hoje, não seja uma pessoa tão conhecida fora do pequeno círculo do zen nacional. Não o conheci pessoalmente (há anos está morando na França), mas estudei e estive em várias ocasiões com alguns de seu alunos, por isso também o considero um de meus professores.

  Realizava os meus dokusans durante os Sesshins (retiros) com Saikawa Roshi, que foi sacerdote theravada por um tempo antes de ir para a escola Soto. Ele trabalhou junto de monges como Maezumi Roshi, ligado à tradição de Harada Roshi e Yasutani Roshi (fundadores da Sanbô Kyodan - uma vertente bastante crítica ao fenômeno da profissionalização dos monges no mundo contemporâneo). Desse contato, suponho, resultou algo de sua técnica que se assemelhava a koans. Diferente do que pensa o senso comum, por vezes da mesma maneira a academia e seus intelectuais que na verdade, no geral, só sabem do "budismo oriental" aquilo que leram de filósofos ocidentais como Schopenhauer e Nietzsche (que absorveram o que puderam em suas épocas através de, não raro, traduções bastante duvidosas), koans também são usados no treino da Soto e não apenas no Rinzai.

  Tudo varia e depende, no zen, da linhagem e do seu professor. Ou professores - não precisa haver uma filiação absoluta a um apenas, tanto que peregrinações para treinar com outros roshis sempre foram bastante comuns, inclusive na literatura clássica. 

  Segui a prática, portanto, depois de minha primeira Universidade, frequentando o Busshinji de SP, fazendo retiros periódicos e dokusans. 

  Não encontro a Sangha desde o início da pandemia. Algo que, espero, se modifique agora que estamos numa situação mais segura. Também porque não resido em São Paulo. Embora parte de minha família seja da capital e vá para lá com alguma frequência todos os anos desde criança. 

 Tive uma sorte enorme e imerecida, durante meu caminho no zen. Alguns dos monges e praticantes que conheci não só me ajudaram espiritualmente, mas algumas vezes, até mesmo materialmente, doando samuês (vestimentas formais) e/ou financiando custos para permanência em retiros. Sempre serei imensamente agradecido pelos bons encontros que ocorreram. 

 Hoje, depois de ter metade de minha vida dedicada ao zazen, não sei como é viver sem o dharma. Acho curioso pensar a respeito, pois passa a ser algo que te acompanha em todas as atividades do cotidiano. Sigo dizendo que não conheço nada no campo do pensamento e práticas ocidentais como a experiência do zen. Embora trate de algo que esteja também, indubitavelmente, presente no campo das artes, da música e da curiosidade humana de modo geral. 

  Poucas coisas são tão comuns e nos irmanam a todos como o mistério, a insatisfatoriedade e as grandes questões sobre vida/morte (sei que existem tradições meditativas e outros exemplos no ocidente, mas não tenho muito conhecimento sobre tais tradições). 

  Michel Foucault, grande filósofo francês, de pensamento representativo da sensibilidade da contemporaneidade, segundo consta, esteve alguns dias junto de alguns monges, convivendo e partilhando de seu dia a dia e fez declarações sobre a sensação de originalidade de sua experiência: pode ficar aqui como uma dica de pesquisa muitíssimo mais interessante sobre o assunto.


vales cerrados 

em meio ao alegre carnaval 

entoam dharma

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  É uma convenção antiga, uma atitude ética, que qualquer um que fale sobre zen ou conceitos relativos à prática aponte suas fontes e professores. Não é possível treinar o zen por conta própria, sozinho. O contato direto, durante anos, com professores é imprescindível. E a sangha sempre tem um papel fundamental. 

  Gasshô.



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*composição nossa - variados timbres de cello (instrumentos de samples e modelagem sonora), silêncios & pandeiro; estará disponível em áudio de alta qualidade em disco ainda a ser lançado

domingo, 11 de fevereiro de 2024


agamémnon


taiso eka (éca!) :p

ofereceu seu braço

ao monge bárbaro

de aparência 

e atitudes exóticas

vindo da índia

o dragão indiferente 

no final do caminho

do lago de cinzas

onde flutua uma hydra

pouco se importa

se deceparem 

parte de sua cauda 

para que se forge

uma espada