(Tradução de trecho do Anatta-lakkhana Sutta)
“A forma é não-eu. Pois se a forma fosse o eu, essa forma não conduziria à insatisfatoriedade* e seria possível obter da forma: ‘Que a minha forma seja assim; que a minha forma não seja assim.’ Mas porque a forma é não-eu, a forma conduz à insatisfatoriedade e não é possível obter da forma: ‘Que a minha forma seja assim; que a minha forma não seja assim.’
A sensação é não-eu... A percepção é não-eu... As formações são não-eu...
A consciência é não-eu. Pois se a consciência fosse o eu, essa consciência não conduziria à insatisfatoriedade e seria possível obter da consciência: ‘Que a minha consciência seja assim; que a minha consciência não seja assim.’ Mas porque a consciência é não-eu, a consciência conduz à insatisfatoriedade e não é possível obter da consciência: ‘Que a minha consciência seja assim; que a minha consciência não seja assim.’
Qualquer forma, quer seja do passado, futuro ou presente, interna ou externa; grosseira ou sutil; inferior ou superior, próxima ou distante: toda forma deve ser vista como na verdade é, com correta sabedoria: ‘Isso não é meu, isso não sou eu, isso não é o meu eu.’
Qualquer consciência, quer seja do passado, do futuro ou do presente, interna ou externa; grosseira ou sutil; inferior ou superior; próxima ou distante: toda consciência deve ser vista como na verdade é, com correta sabedoria: ‘Isso não é meu, isso não sou eu, isso não é o meu eu.”
* "Insatisfatoriedade" - tentativa de tradução da palavra "Dukkha". Essa palavra da língua páli é central para a compreensão do ensino do cânon budista.
Dukkha designa qualquer forma de não contentamento, desde o mais simples desconforto até o mais profundo sofrimento físico ou mental. A realidade apresenta-se como uma balança alternando da felicidade para o pesar, da tranquilidade para a agitação, etc... Todo e qualquer descontentamento é Dukkha. Toda e qualquer busca é Dukkha, o descontentamento existencial, a agitação intelectual e estética, etc. E toda e qualquer felicidade também é Dukkha pois não há como sustentar uma felicidade infinita desde que esta esteja na dependência de algum objeto.
Mas por fim Dukkha não é bom ou mal, simplesmente Dukkha é, existe e fundamenta todas as formas mentais ou físicas.
A passagem acima explicita justamente a condição de impermanência dos objetos e dos orgãos de percepção da realidade.
Mas, afinal de contas, o que restaria depois da forma e da consciência, depois dos objetos e da personalidade?
Do ponto de vista ocidental pode parecer que se trata de um total apagamento, pois tudo que conhecemos é justamente aquilo que parte das construções dos sentidos, das formas – “Penso, logo existo”
Uma anterioridade não pode ser postulada, pois ali não tem mais intelecto, nem estrutura. O pensamento não dá conta do vazio. Afinal de contas a única coisa que a ciência não pode descobrir é o zero, o início de todas as coisas. Aqui começa a prática da meditação ou do zazen: “além da forma e do vazio”.