terça-feira, 21 de maio de 2024





Round 1: Cioran


Não leio Cioran procurando verdades. Me diverte. Seu pessimismo é espirituoso. Causa alguma catarse. Contraditoriamente (pois se trata de alguém que escreve sobre as possíveis vantagens do inanimado), cheio de vida. Compreendeu muito melhor a tradição oriental (pela qual demonstrou bastante interesse) do que seus antecessores, Schopenhauer e Nietzsche. Muito por questões de tempo, geração. Perceptível em seus escritos que foi afetado pela moda do zen na Europa, na passagem para segunda metade do século XX (que mais girou em torno do Rinzai, praticamente ignorando Dogen e a Soto). Hoje, o zen, e parte do melhor do budismo voltaram a ser ignorados pelos intelectuais ocidentais ou são novamente completamente mal compreendidos, retornando, assim, às prateleiras do orientalismo vulgar.

Notável a atitude, por exemplo, de psicanalistas famosos, hoje em dia, que possuem a total falta de vergonha de falar e escrever sobre conceitos que claramente não compreendem. 

Já há muito tempo existe a consciência de que foi necessário formular uma psicanálise nova, que, por exemplo, obviamente não utiliza mitos de origem greco-romana, para lidar com povos de outras tradições, outras construções imaginárias. Só no Japão, Heisaku Kosawa com seus estudos vinha discutindo estes aspectos mais ou menos desde a década de 20 do século passado. 

Mas, como se sabe bem, a autoestima e a completa estupidez da pessoa branca de classe média é abissal. Vivem com seus óculos em formato de umbigo. Falam e escrevem asneiras preconceituosas e julgam a todos porque se entendem como os possuidores da verdade, sobre tudo e sobre todos os povos. 

Vi uns tempos atrás uma completa idiotice sobre "o sexo transcender o nirvana", da parte de pessoa famosa e psicanalista (famosa inclusive por cobrar os olhos da cara por consultas). Como se fosse possível uma competição entre os dois termos. Como se fosse possível simplesmente pegar toda e qualquer tradição e colocar no mesmo lugar onde Freud colocou o monoteísmo judaico-cristão. 

Nunca tive muita simpatia por Jung, mas este teve alguma noção da complexidade do assunto, quando se tratava do pensamento oriental, e era, de fato, muitíssimo mais culto do que Freud. Diferente dos contemporâneos de agora, sem vergonha de serem preconceituosos e ridículos. 

Mas sucesso é medido, nos círculos dos psis, pelas conquistas materiais, financeiras, números de publicações, e não pelo cuidado com a elaboração de seus textos. Psi bom é psi YouTuber, nos dias de hoje. E podem falar qualquer asneira, a maior parte de seus seguidores e alunos nem vão perceber nada.

Mas voltando ao Cioran, que é o que de fato me interessa mais. Há passagens maravilhosas. Não vejo como não gostar dum sujeito que escreve sobre simplesmente deixar o satori de lado para seguir com seu passeio. Não demonstra uma ignorância ridícula e preconceituosa como no caso da pessoa que num gesto imbecil declara que o sexo transcende o nirvana. Como se o nirvana fosse (pasmem!) algum tipo de sensação especial. Como se o nirvana fosse algum tipo de... paraíso? Como se o nirvana fosse algo realmente a ser alcançado. Algum estado especial de êxtase que competisse com o orgasmo. 

Fora exibir que nunca foi pesquisar sobre as palavras que utiliza, (mas talvez só se basear no que escuta de analisandos financeiramente privilegiados que consomem o pior do kitsch?) a pessoa nem parece saber que no oriente se desenvolveram inúmeras  tradições (como o tantra e certas práticas taoistas chinesas e japonesas) que usam o sexo como forma meditativa, e que o estalinho mixuruca que o ocidental conhece como resultado de um coito nem se compara às profundas experiências de investigação sensorial dessas práticas. Em muitos sentidos (e Jung, novamente, parecia desconfiar disso em seu tempo) os pesquisadores ocidentais ainda engatinham onde não conseguem enxergar uma antiguíssima linha de pesquisa, cegos por suas epistemologias e preconceitos. 

Cioran parece talvez ter atingido a enorme decepção com o mundo que é necessária (a grande desilusão, o que os antigos chamavam de "a mente que busca o caminho") para adentrar as vias do zen. Ou simplesmente utiliza a ironia de maneira formidável. Porque contrariando o budismo de boutique e monges influencers digitais idiotas, um verdadeiro budista é alguém completamente desiludido deste mundo das formas, transientes, impermanentes. Não que obrigatoriamente a pessoa vá abandonar tudo, raspar a cabeça e se encerrar num monastério (e há vários exemplos de grandes praticantes leigos na literatura desde os tempos do fundador), você pode permanecer na sociedade e aproveitar de tudo que ela oferece (no ocidente só são populares as tradições Brahmacharyas, que negam a sensualidade, no entanto existem outras, opostas) mas internamente há uma profunda constatação de que nada, absolutamente, no mundo, conduz ao fim da insatisfatoriedade - a tradução mais precisa para "dukkha", pois Shakyamuni nunca falou a palavra "sofrimento".

No entanto, num ato de honestidade e consciência, consciência talvez de que pertence a uma outra formação, Cioran prefere seguir seu passeio. Cioran é muito mais budista (inclusive escolhendo não seguir os ensinos do Buda), do que certos mestres contemporâneos em seus trajes esvoaçantes, no ocidente do século XXI, num calor de 40 graus. 

A passagem é a seguinte:


"Enquanto passeava a uma hora tardia naquela alameda ladeada de árvores, uma castanha caiu aos meus pés. O barulho que ela fez ao rebentar, o eco que suscitou em mim, e um abalo desproporcionado trazido por aquele incidente ínfimo, mergulharam-me no milagre, na embriaguez do definitivo, como se já não houvesse mais perguntas, apenas respostas. Estava bêbado de mil evidências inesperadas, das quais não sabia o que fazer...

Foi assim que estive quase a atingir o sublime. Mas achei preferível continuar o meu passeio."


(cioran, do "de l'inconvénient d'être né", trad.: manuel de freitas)