terça-feira, 28 de outubro de 2025

 

do novo (divagações) - parte I

(The Human Condition, 1933, Rene Magritte)


“For something new to come into existence, ignorance must exist. 

That is the position we are in, and that is why we must conceive, in the full sense. When we know something, we are already not conceiving anything any longer.” 

j. lacan, seminar II: the ego in freud’s theory and in the technique of psychoanalysis, pg. 315.
 


algo novo nunca é prontamente percebido, mas recalcado, mal interpretado. não raro, combatido. justamente por não ter ainda um lugar simbólico, um lugar no campo do saber e da linguagem.
o novo interrompe a cadeia do saber estabelecido. coloca em crise o lugar seguro de uma identidade e exige dos sujeitos deslocamento, que abandonem suas completudes imaginárias.

só quem pode habitar o lugar da falta. só quem consegue reconhecer que não se é completo (jamais somos, ao menos não enquanto estamos vivos). apenas assim algo novo poderia não apenas ser percebido, mas realizado, construído. quanto mais alguém se acha completo, quanto mais alguém é arrogante, menos pode perceber ou criar alguma novidade.

quanto mais não se compreende uma pessoa e não se consegue se perceber como ser faltante, mais ocorre de fantasiarmos o outro a partir de nossos próprios desejos. 

não é mera teoria, é algo estrutural. e verificável. 

curioso notar como intelectuais que não leram freud/lacan simplesmente vivem se debatendo com uma certa incompreensão do que é a subjetividade humana. ateus que não compreendem como alguém pode seguir uma vida baseada em crenças e insistem em debates filosófico (muitas vezes ridículos e risíveis, a não ser para eles mesmos e seu público igualmente boboca). pessoas preconceituosas com estrangeiros, outras modalidades de ser e desejar. 

não tenho religião. não acredito que um criador seja possível, ou necessário. embora ordenado pela soto zen, não acredito em renascimento e entendo karma como causa e efeito (as bases da ciência moderna estão no pensamento oriental antigo, isso sendo reconhecido ou não é um fato). posso dizer que incorporo aspectos, sobretudo a meditação. mas não procuro refutar ou debater com ninguém. não estou cem por cento de acordo com absolutamente nada. 

fatos, o que interessa são fatos. aos fatos devemos nos render. nenhuma formulação, tradição ou disciplina é superior à verdade verficada.
aceito que somos incompletos e sempre seremos. 

não me parece que a mente humana um dia irá decifrar os mistérios do universo. 

o que a tradição do zen chama "satori" e, em menor grau, "kenshô", são vislumbres diretos da realidade da inconsistência de um "eu". vislumbres derivados de uma vida disciplinada pelo zazen. aqui, me parece, o mesmo "eu", (ou muito próximo do) que lacan nomeou "O sintoma primordial". embora esteja consciente de que "desejo" para as duas tradições sejam coisas bastante diferentes (e de que o zen propõe algo muito mais profundo e amplo do qual psicanalistas, com razões, desconfiam) , enxergo mais proximidade do que incomunicabilidade (procurei praticar o zazen sob orientações de professores durante quase duas décadas e frequentar uma análise lacaniana e um curso de psicologia antes de formular qualquer argumento a respeito, diferente de outros pessoas por aí). 

mas o preconceito, as bolhas e as certezas são dominantes em nosso tempo. e principalmente porque sempre há alguém LUCRANDO de alguma forma com tudo isso.

por exemplo, nunca senti atração física por pessoas do mesmo sexo. mas por ter sido criado num ambiente de imigrantes japoneses (minha mãe ainda foi de uma geração que precisou ir para a escola para aprender português. embora tenha nascido aqui. minha família, à época, era fechada na colônia), quando criança, assim como muitos outros, sofri bullying, fui chamado de "viado", "bicha", & termos semelhantes. não apenas por outros garotos estúpidos do interior de são paulo (foco de todo tipo de conservadorismo, atrasos e fascismos: bauru ainda sustenta uma rádio bolsonarista odiosa que era ligada à jovem pan e milhares de seguidores que elegeram o genocida adorador de torturadores "cidadão honorário" da cidade), mas por pessoas que percebiam meus modos como "excessivamente polidos", pessoas que exergavam "excessiva atenção para com o outro", "excessivo respeito", "excessiva educação", quando, do meu ponto de vista, qualquer outra coisa era simplesmente algo que não se aplicaria. porque, ora bolas, numa sociedade monstruosamente preconceituosa como a nossa, gay é todo aquele "excessivamente sensível", "excessivamente inteligente", "excessivamente silencioso" e NÃO quem simplesmente sente atração por alguém do mesmo sexo. fora, é claro, a palerma obviedade do desejo que brutamontes imbecis e recalcados projetam.

e para "piorar", sempre me identifiquei e procurei me aproximar de pessoas marginalizadas. junkies, pessoas com dificuldades materiais, pessoas de fato homossexuais, ateus, excomungados da igreja, gente das pequeninas e quase invisíveis cenas alternativas. até hoje, tenho completa aversão por ambientes acadêmicos, grupos, saraus, tudo que pareça refletir o padrão aceito. foi completamente natural, tendo em vista todo o processo, me aproximar de arte de vanguarda, música experimental, tudo que fosse considerado esquisito, marginalizado e impopular, tudo que verdadeiramente irritasse as "gentes de bem" e as mantivesse longe (embora haja por aí quem me chame de elitista). foi uma forma de afirmar minha própria estranheza. também porque os imigrantes japoneses, embora tenham procurado seguir suas tradições, em sua grande maioria não buscaram exatamente afirmar sua diferença, mas se adaptar. 
metodicamente, procuro ignorar, me afastar totalmente da presença online de meus parentes que, respeitosamente, fazem o mesmo comigo. a maioria viu-se obrigada a converter-se ao cristianismo, certa atitude de obediência acrítica bastante comum. 
também sei de pessoas que, num passado nem tão distante, foram obrigadas a se converterem ou não poderiam frequentar a escola: antigamente a principal (quando não a única) maneira de se ter a oportunidade de aprender a língua portuguesa. e sem se comunicar não haveria a possibilidade de sobreviverem. sei de histórias pavorosas de preconceito envolvendo o processo de imigração, coisas que a comunidade, evitativa, não comenta abertamente. 

depois, quando por um período fui viver no japão, embora passasse a maior parte do tempo despercebido, quando precisava conversar ou mostrar algum documento automaticamente surgia o rótulo "gaijin-san". quer dizer, o nikkei (descendente) é sempre estrangeiro em qualquer lugar. 
lembro de uma colega de prática zen, uma nisei, que também era psicanalista, ela dizia que todo descendente, idealmente, deveria passar por uma análise, porque os orientais foram o povo com a maior dificuldade de adaptação haja visto as diferenças culturais. e ao final, mesmo que retornem ao território, passam a ser estrangeiros mesmo na cultura de origem, por terem migrado e seus descendentes nascido em outro lugar.

vivi na pele algo que o discurso majoritário nunca nomeia: como a diferença é atacada mesmo quando ela não se declara, apenas por existir. ou por recusar a norma.   


epílogo:

admiro e aprendo muito com figuras como o tom zé. que, detalhe curioso, conheci quando tinhas uns 15/16 anos. 
estava indo a um de seus shows com um amigo (o baterista da minha banda na época). ainda era cedo, e estavam passando o som. a gente tinha facilidade de entrar em eventos apesar da idade, porque éramos da cena musical e sempre conhecíamos alguém que nos colocava pra dentro. aliás, dessa mesma forma conseguimos conhecer alguns artistas que admirávamos como o joão gordo e o ratos de porão, arnaldo antunes, o lobão (antes de pirar e virar olavista). 

a ênfase do evento em questão não era tom zé, mas um conjunto de rap que era famoso naquele tempo (cujo nome nem me lembro mais). trombamos com ele na entrada do sesc. a felicidade dele ao ver dois garotos sujos e cabeludos que o reconheceram automaticamente embora não fosse a atração principal, com uma nítida, efusiva e sincera admiração estampada nas caras feias, fez com que ele simplemente apontasse para a van e dissesse: "meus filhos, vocês querem ir almoçar?". foi algo como um gesto impensado, totalmente espontâneo. ele estava com um de seus músicos e talvez na verdade só quisesse que a gente ajudasse a localizar algum restaurante pela região. mas no final não fomos, porque éramos uns verdadeiros bichos do mato, muito novos, tímidos, e ficamos com uma vergonha imensa. 
era um dos nossos heróis, já fazíamos até uma versão de "brigitte badot" (que possui uma variação super interessante, um susto que lebrava muito a dinâmica loud quiet loud da música alternativa). 

mas enfim, o tom zé embora seja um dos artistas que mais admiro, sempre diz que talvez tenha começado na música por perceber que seria uma forma de ser amado pelas outras pessoas. minha entrada na música se deu de forma bastante diferente. lembro (um de meus primeiros contatos com intrumentos) com uns quatro ou cinco anos, de brincar com um pianinho de brinquedo no quarto de uma das minhas primas. os sons me provocaram um transe muito profundo. uma experiência inesquecível. tão marcante e poderosa que minha mãe passou a me dar vários tipos de instrumentos de brinquedo. comecei a compor com essa idade algumas peças rústicas usando brinquedos que possuiam teclados e gravadores simples, como o pré-histórico "pense bem" da tec toy. quer dizer, música para mim sempre foi algo não para me aproximar ou chamar atenção das pessoas, muito pelo contrário: era um ritual de isolamento. começou como uma forma de alcançar estados interiores, um movimento para dentro. não à toa passei a me interessar mais tarde por alteradores da consciência. até que cheguei ao zen e o zazen. 

também há o fato de que minha formação se deu no período pós-grunge. ainda reverberava uma ética de valorização da feitura do trabalho, sobretudo. jamais da mera busca por atenção e popularidade. hoje atenção é uma das moedas mais disputadas em redes sociais. não interessando exatamente o que se faça. volto a repetir: o capitalismo é o mais completo vitorioso. as pessoas que já surgem em tal ambiente nem se interessam por nada dessa discussão. nem mesmo sabem detectar algo que seja de fato novo. mas irão chamar de "novo" se atrair público. 
vivemos num período nefasto em que qualquer um encontra uma comunidade para fortalecer a visão ilusória de sua bolha de realidade. ninguém verifica com critério absolutamente nada. e ninguém se importa. 
o veneno da ambição está em tudo, sobretudo nas interpretações do mundo. 

os intelectuais e escritores, mesmo muitos dos que se propagandeiam de ligação com as vanguardas são na verdade apenas mais uns subordinados do pensamento corrente. uma verificação mais detalhada pode revelar. não passam de uns papagaios sanguessugas do que já tem renome. só se interessam pelo já consagrado ou por aquilo que lhes espelham ou podem lhes favorecer de alguma maneira. variados clubes-dos-iguais-com-tapinhas-nas- costas e resenhas elogiosas. praticamente nada que busca ser minimamente original triunfa nestes tempos, nem parece haver qualquer possibilidade de mudança.

TUDO ESTÁ À VENDA. & nem há uma consciência verdadeiramente adequada de todo o processo. 

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parte II - highlander


"Why does the sun come up? Hmm? 
Or are the stars 
just pin holes in the curtain of night, 
who knows? 
What I do know is that 
because you were born different, 
men will fear you... 
try to drive you away, 
like the people of your village." 

"Porque o sol se levanta? Hum?
Ou são as estrelas
apenas pequeninas aberturas
na cortina noturna,
quem sabe?
O que eu sei é que
porque você nasceu diferente,
os homens vão temê-lo...
tentarão te afastar,
como as pessoas da sua aldeia."

do "Highlander" (1986)
 

para mim, um das maiores obras cinematográficas de todos os tempos. 

apenas o primeiro. 

tudo que veio a seguir é desinteressante. os seriados, e tudo mais. e a catástrofe que é o segundo filme, que tenta reescrever toda história e oferecer explicações totalmente desnecessárias, apenas por interesses comerciais. é tão ruim que o terceiro tenta ser continuação do primeiro, procurando eliminar a sequência direta. é mesmo bastante engraçado. se não me engano, parece que o diretor tentou dissociar seu nome dos créditos. 
o primeiro é bélissimo. filosófico, com roteiro bastante original de gregory widen. que escreveu enquanto ainda era estudante. teve a ideia após visitar uma exposição com antigas armaduras medievais. embora se consiga traçar semelhanças com obras anteriores e histórias folclóricas antigas.

trilha sonora inesquecível e impecável do queen, que captaram as ideias da obra com uma sensibilidade espetacular. inovação formal com um ritmo super veloz de videoclipes. o diretor, russell mulcahy, era um dos diretores mais importantes da MTV nascente no início dos anos 1980.

todo indivíduo que se volta para a cultura, para a memória cultural dos que lhe antecederam acede a algo imaterial e imortal.

sempre retorno a alguns filmes. assim como a alguns livros, músicas, jogos, obras artísticas... 
muitas vezes, prefiro retornar a certos trabalhos ao invés de pesquisar por pretensas novidades. 
como disse pound (ezra) muito bem (e outros autores antes dele), é impossível esgotar o interesse por exemplo, por homero: há sempre invenção sonora novíssima ali. é impossível esgotar o interesse por confúcio, dante, etc. 
a explicação do porquê clássicos são (ora vejam) eternos.

a realidade é que há bem mais diluições por aí do que trabalhos verdadeiramente originais e marcantes. não importando que se consiga perceber toda a situação ou não. aliás, quem liga para originalidade hoje em dia? mais precisamente: as pessoas são na verdade capazes de chamar qualquer coisa de "original". as pessoas são capazes de chamar qualquer porcaria de "genial", atualmente. não têm repertório. é uma época em que qualquer completo idiota desafia especialistas, doutores, não importando a área. afinal, a internet e as IAs estão por aí. todos acreditam, fervorosamente, que sabem de tudo - inclusive que a terra, afinal, é plana. 

vivemos tempos muito obscuros. talvez como nunca antes.

como se sabe, o maior acesso a informação acabou por criar as famigeradas bolhas de conhecimento. qualquer tipo de grupo se forma para defender as maiores loucuras ou atrocidades - sempre haverá nalguma parte do planeta um bando de imbecis que são tão ignorantes quanto você e lhe darão suporte para defender qualquer absurdo. 

e há sempre, obviamente, quem esteja lucrando MUITO com tudo isso.

infelizmente, a tendência é que cada vez mais tudo se volte apenas para o mercado. ou para noções falaciosas do que realmente teria grande valor artístico. o que realmente seria feito e possuiria a capacidade de permanecer, seguir reverberando. 

tudo isso é especialmente notável contemporaneamente. pois tudo se volta cada vez mais (e mais) apenas para o comércio.  é comum "artistas" que nem mesmo se colocam tais questionamentos, que já surgiram em ambientes em que suas formações simplesmente passam muito longe de qualquer interesse pelo assunto. atuam em cicuitos voltados apenas para a captação bancária de atenção - de qualquer um, já que se trata da nova moeda atualmente nas redes sociais. não se importam se um escroto fascista qualquer vai até a sua página pedir para fazerem cover de um nazi psicótico e assassino como burzum, por exemplo. se são seguidos e geram simpatia entre embusteiros. não existe preocupação ética. o que importa é que estão fornecendo atenção. o que importa é "se dar bem"

como se a situação toda fosse qualquer outra coisa que não apenas comércio vulgar. embora sigam nomeando de "ambiente artístico". 

novamente (porque vivo repetindo por aqui), o capitalismo é o vitorioso absoluto do nosso tempo. tão vitorioso que dita padrões que nunca são nem mesmo diagnosticados. nunca são questionados. 
o professor vladimir safatle, no tocante aos fenômenos políticos, quando falou da tão mal compreendida "morte da esquerda", ao focar na apropriação da linguagem neoliberal por parte das oposições, toca num campo muito próximo desta discussão, é interessante notar.

por final, pound também dizia que o artista sério, apesar de todas as dificuldades, não deveria temer a incompreensão, o desprezo e o ostracismo. se de fato fez um bom trabalho, em algum momento, alguma geração de verdadeiros apreciadores tende a surgir e desenterrar aquelas empreitadas que não se pautaram apenas pela mera capacidade de circulação. e mário faustino acrescentou que, se for o caso de não passarmos de diluidores, tudo bem da mesma maneira: que tenhamos sido diluidores que ao menos apontaram para o que havia de mais interessante.